segunda-feira, 22 de junho de 2009

o homem e as pedras

...e assim ele largou o emprego público e resolveu catar pedras pelo caminho. E assim começou a sentir interesse em levar para casa as mais diversas espécies de pedras, mesmo sem nenhum valor, porque acharia que, com isso, estaria, de alguma forma, dando seguimento à existência. Andava pelas ruas de cabeça baixa, sempre à espera de que aparecesse algo esférico ou oval, que fosse reluzente ou opaco. Catava-as perto de obras em construção, vasculhava pedreiras, circundava regiões vizinhas à praia. Certa vez andou quilômetros até esbarrar em litorais rochosos, entrecortados de recifes e algas. Passou dias a escolher as mais bonitas, sempre carregando-as em suas algibeiras, para depois lançar tudo quarto adentro, quando a casa retornasse. Admirava seus encantos, deslizava-as por entre as mãos, tinha um olhar fixo, talvez doentio. Era o seu deleite recentemente descoberto, depois que pediu demissão do emprego. Regozijava-se das ondulações de cores, do verde quase azul, da furta-cor das quase preciosas pedras, já que não podia alcançar as verdadeiras preciosidades: seu ofício burocrático e pouco remunerado não lhe permitia maiores gastos. Fatigado de fixar olhar sobre as brilhosas, decidiu que seu ideal seria colecionar as mais rudes e inexpressivas pedras das ruas, pelo seu encanto, talvez pelo efeito tosco que algumas delas traziam e que o fascinavam. As de brilho também eram recolhidas, mas não surtia o mesmo efeito de encantamento. Passou certo tempo nas montanhas, recolhendo as mais rústicas, achando que, com isso, estaria mais próximo da essência que todo homem acabaria por se render. O gesto final, a vida final, a inevitável essência final. Seca e simples, fruto de sua existência mesquinha.
Na subida da montanha, encarou as subidas íngremes, arranhou-se na subida, deu cabo da descida. Pelo caminho encontrou mais e mais pedras. O peso de seu corpo quase não podia com as algibeiras rebentadas. Sentou-se. Depois que recolhia as do dia, dava-se por satisfeito, ia embora. Uma vez, em casa, extasiado, pensou consigo: não me interesso saber nomes, espécies, origem, pouco importa. Nada lhe tirava o prazer do achado, da delícia que era encontrar o que a ele lhe pertencia de direito. Sabia que havia percorrido um caminho. Precisava percorrer, seguir. Acima de tudo, seguir fundo na existência, até o fim.
Sem que se desse conta, já com cabelos brancos, certo dia escolheu as menos lapidadas, deitou-se na cama, cobriu-se de centenas delas. Decidiu assim permanecer por horas. Ficou a manhã toda. A tarde toda. Enfim, ficou o dia todo, sem mover sequer o lábio, de olhos fechados, até que se consolidasse o extremo êxtase de senti-las todas juntas dele. Queria sentir-se mais uma vez, desde que nasceu: pedra tosca. A sensação sólida inesgotável. A prova cabal da existência. Necessitava sentir a essência da vida, da energia bruta, solidificada, empetrecida, por sobre seu corpo já esquálido. De olhos fechados para o mundo, sentiu, por fim, a vida se esvair, e a materialização de tudo estava sendo feita. Ficou a um só fôlego, petrificado, sem mais o brilho do olhar, matéria roxa, seca, fria, tão fria quanto às pedras que escolheu.

2 comentários:

Unknown disse...

achei seu poema enquanto redfinia minha tese de doutorado em arqueologia.
sou um catador de pedra, e achei interesante seu texto.
sou professor de história
abrigado po me inspirar!

Meire Viana disse...

Fico feliz por ter lhe inspirado. Boa sorte na sua busca e na sua tese!